quinta-feira, 14 de maio de 2009

Texto do Maurício

Memórias de um usuário

Olá, eu sou o Maurício.

Minha história começou aos 16 anos. Antes já havia experimentado com meus irmãos, já os via usando rotineiramente. Quem me apresentou mesmo foi o mais velho. Disse que era legal, no final o barato era louco, arrepiava demais. Até então eu era só o caçula da mamãe, mas aos 16, entrando no ensino médio, não havia como evitar; comecei a usar de leve. O frisson do inexplorado, a disposição incipiente e cega me jogou gradualmente nesse mundo tão detestável. Aquele sistema que vai contra todos os meus princípios, mas hoje eu posso encher a boca e falar, graças à mim, eu posso dizer: “tô limpo”.

Era um livrinho ali, um resumo acolá, xeroca da nerd da sala, uma aula à tarde, prova na sexta, simulado no sábado. E aquilo tudo ia me consumindo pouco a pouco. ‘Ah, deixa pra lá, leva nas coxas, tu sempre passou no terceiro bimestre, nunca fez recuperação, fez fama deita na cama, fica tranquilo’, eu já via os sinais claros daquela dependência, já sentia necessidade de me desintoxicar, mal sabia que esse desejo, outrora e bem mais forte quase me faria desistir de tudo.

Meu irmão do meio começou a usar freneticamente, injetava tudo aquilo na veia. Respirava aquela droga toda. O mais velho já colhia os frutos daqueles anos carregando este fardo. Meu segundo ano foi mais tranquilo, para não dizer quase nulo. Sentia que podia largar aquilo tudo e viver minha vida já sem isso. Minha vontade era pegar uma mochila e cair no mundo com uma câmera, lendo os livros que eu queria e não ter que analisar Cruz e Sousa. Não aquele pensamento pragmático, tosco, tacanha. Eu queria duvidar do mundo, porque eu sabia desde meus quatorze anos quando escrevi no meu caderno de sétima série, que uma cabeça quando encontra outra idéia, nunca volta ao seu tamanho original.

Cada vez mais me desaproximava do mundo das drogas e posso dizer que nesse sentido, meu segundo ano foi fértil. Mas o homem é fraco, a carne é fraca e cede. Um ano novo começou e eu passei a usar tudo de novo. Aquela idéia arquitetada em concreto forte, se desmanchou assim, abrupta, como se terminam as coisas. Mais uma vez, injetei todo aquele sistema na minha veia, era já o meu terceiro ano na sarjeta; fumava tudo na minha frente, cheirava carreiras imensas: jornalista? Hum, vou pensar. Cineasta? Não, não, nem pro pão dá. Letras? Nem pão, nem café. Antropologia? “Isso é curso? Aonde?” Filosofia? “E vai ser professor, é?” Economia? Legal, dá grana, posso investir no mercado financeiro, comprar aquela ação da Petrobrás que tá em baixa, ficar rico… ficar rico é legal.

Se o homem é fraco, o homem dominado é mais. Debilitado, ia seguindo minha vida sem saber pra onde ir. Só ia tocando assim, nem vivendo, nem morrendo, sobrevivendo. Decorava aquilo tudo, não me reconhecia em mim e o final desse ano não poderia ser diferente. Reprovei no exame antidoping.

Com perspectivas fáceis, falsas, dizia que tava tudo encaminhado. “Ano que vem tem mais”, tranquilo. Assegurava aos meus pais: “Só mais um tirinho, daí eu vou largar esse vício, juro”, devia satisfações a eles. E achava que para se desintoxicar era necessário chafurdar no mundo das drogas. Usar mais e mais. Achava que os professores tinham de me pressionar cada vez mais para estudar, que aquela competiçãozinha diária me faria bem.

Foi um ano mais duro, estava muito infeliz. O Ministério da Saúde adverte: estudar numa sala com 115 drogados causa danos à saúde mental e física. Nada dava certo, isso me preocupava muito e foi nesse ano que quis desistir de tudo, desistir de fazer comunicação, desistir de morar fora de Goiânia, desistir de buscar o que eu quero e é de meu direito. Meu sonho era jogar na lotérica, ficar rico e poder fazer tudo aquilo que eu queria: ler os livros senão os de Cruz e Sousa, escrever, viajar por aí. Trabalharia seis meses e folgava seis, imagina! Comprava um sítio, arrumava um xodó, um cachorro e uma rede.

Mas não, eu devo satisfações aos meus pais e as chances da lotérica são bem remotas. Ainda resta em mim um otimismo inexplicável quando tudo vai se embora. A astrologia deve explicar.

No final de 2007, como não poderia ser diferente, reprovei no antidoping de novo.

Em 2008 o martírio abrandou, as coisas foram se aprumando. Foi quando percebi que se tratando de mim, respeitando o que sou não fazia sentido se jogar assim, a fossa cada vez seria mais funda. Hoje estudando Aristóteles, me sinto bem em pensar que ele pensou o mesmo que eu, mas de um jeito mais rebuscado e profundo. Aquela pressão não era pra mim. Arranjei uma namorada que realmente gostei, viajei algumas vezes, e confiante, não entrei em clínica de reabilitação, resolvi me desintoxicar sozinho. Estudava nos dias de semana, folgava o final de semana com ela. Talvez tenha abusado um pouco da confiança, foi por conta de dois itens que tive de voltar pro meu quarto e continuar essa empreitada só, mas não me arrependo deste semestre perdido. A cabeça estava boa, não me esforcei e as coisas foram acontecendo naturalmente, como as coisas tem de vir.

Mais seis meses seriam necessários para enfim sair da lama e abandonar as drogas. Penso que valeu a pena... Tenho apreciado a minha caretice. E pensar que todos os ideais arfados em cada pausa, em cada desvio de atenção, cada devaneio, apesar de persistirem, agora encontram terreno mais seguro. E já que cada um é um universo, faz sentido tudo isso. Pessoas mil, idéias mil, diferenças, planos, projetos, sonhos. Não, eu não encontrei Jesus, entrei pra universidade. Eu sei que tudo isso pode passar e ainda não é uma centelha do que deveria ser, mas vejo muita coisa boa por vir.

Maurício Campos

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